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Por Adyashanti, Relacionamento Dármico (projetar fantasias espirituais nos outros)

Uma das valiosas lições que aprendi nos vários anos em que fiquei sentado em meditação zen foi que, para estar realmente comigo mesmo, teria que me encontrar. Sentar-se silenciosamente e conhecer apenas uma imagem de si, ou uma imagem do Divino, é conhecer somente miséria e tagarelice infindável. Jamais podemos estar totalmente confortáveis sentados com uma imagem, mesmo que seja uma boa imagem. Quando nos sentamos como nosso verdadeiro Self, então estamos nos sentando como não autoimagem, não autoconceito e não autoideia. Estamos apenas sentados como espaço. Essa é a base do verdadeiro relacionamento, pois, se não estamos nos relacionando com o que efetivamente somos, com certeza será difícil para nós nos relacionarmos verdadeira e profundamente com qualquer outra pessoa.

Quando estamos em relacionamento que funciona como o nosso próprio vazio radiante, a relação é bela, pois estamos sendo O que somos. Essencialmente estamos apaixonados pelo mistério.

O mistério está apaixonado por si mesmo. Quando esse mistério está em relacionamento com um outro, seja esse outro chamado de flor, pássaro, vento, frieza ou um ser humano, ele se relaciona Como uma expressão do mesmo mistério. Isso é o verdadeiro relacionamento sagrado, quando vemos que estamos realmente em relacionamento com a manifestação do mistério: aqui como isto, aqui como aquilo, aqui como ele, aqui como ela, aqui como frieza,

aqui como amargura, aqui como doçura, aqui como tédio, aqui como pesar, aqui como felicidade, aqui como confusão e aqui como clareza. Tudo é uma manifestação do mistério. O fundamento real da relação dármica é o relacionamento com esse mistério, com nosso próprio self.

Quando ficamos sem uma demanda neste momento, sem esperar pelo próximo momento, sem esperar obter algo - seja o que for esse "algo" -, quando não esperamos nos iluminar, obter amor ou uma mente silenciosa e quando paramos de exigir qualquer coisa de nós mesmos - então o sagrado se abre pelo simples fato de não haver exigências sobre ele. Um verdadeiro relacionamento sagrado com este momento floresce quando não pedimos para que ele seja diferente do que é. Então a beleza floresce. Mas se pedimos a menor coisa deste momento, então começamos a perder a beleza. Nossos pedidos distorcem o que somos capazes de ver e experienciar em nós mesmos.

A mente acredita que ser livre, liberada ou iluminada significa estar limpa de todas as experiências desagradáveis, mas não é assim. O Divino não ousaria macular a si mesmo removendo algo. Isso seria como amputar seu braço. Mas experienciar essas mesmas emoções ou experiências como mistério, como Deus e como o mistério de si mesmo é transformá-las totalmente.

Veja a inteireza do que realmente está aqui, a qualidade da atemporalidade como ela se mostra através de toda a experiência.

Então seu próprio sentido de sagrado, conhecido naquilo que você é, amplia-se além de experiências agradáveis e torna-se o espectro total da experiência. Você começa a perceber diretamente que toda a manifestação, não importa qual seja, é o lforescimento do Divino. Se houver confusão, é Deus sendo confuso. Se houver clareza, é Deus sendo claro. A seguir, você será capaz de ver Jeus no dejeto, no lixo jogado no esgoto, no morador de rua

que não se banhou nos últimos seis meses. Começa a ver a mesma qualidade de sagrado em todos os lugares, a mesma relação dármica do mistério consigo mesmo. E assim prossegue, cada vez mais, uma penetração cada vez mais profunda e em mais áreas Ao perceber toda essa qualidade sagrada em tudo, saberá que não é quem pensava ser. Você é um mistério vivo, desperto, que não pode ser tocado ou visto.

Quando isso é conhecido, é possível estar em relacionamento sagrado. Se isso não for entendido e você tentar tornar sagradas suas relações, está somente tentando se adequar à própria ideia do que é o relacionamento sagrado, e isso é mais conhecido como violência. Pode-se fazer isso por uma boa razão, com boas intenções, mas se tentar tornar sagrada uma relação, vai perdê-la. Deixou de percebê-la como sagrada. Quando vir que um relacionamento já é sagrado, então está realmente vendo que é uma manifestação do próprio mistério.

Quando vir que tudo é sagrado, você não perderá a habilidade de fazer distinções. É possível ver onde poderia haver desonestidade em um relacionamento, onde não se está mantendo a integridade mais elevada, onde há falta de intimidade ou onde o relacionamento está construído sobre imagens, ideias, projeções ou exigências. Só pelo fato de ser visto como sagrado não significa que você também não veja partes que possam ser ridiculas. Essas visões não se excluem. Às vezes, Deus age de forma engraçada.

Permanecer como se é (que simplesmente é a luz do estado desperto) em meio ao relacionamento é a coisa mais desafiadora que um ser humano pode fazer. Tudo que não é encontrado ou visto será como um botão com um adesivo em que está escrito

"aperte-me" - e atrai dedos. Essa é a beleza do sagrado. Se não for encontrado, se for inconsciente, existe um botãozinho "aperte-me" pois assim não pode permanecer inconsciente. Aí está ele! Alguém o aperta. Boom! Culpa. Ah, uau! Agora a culpa é consciente. Existe a oportunidade. Mas o que normalmente fazemos é torná-la inconsciente o mais rapidamente possível. Assim não vemos: "A culpa acaba de ser acionada. Cara, isto está comigo há muito tempo. Está na programação. Que interessante! O que é isto?". Em vez disso, as pessoas tendem a entrar na psicologia da coisa ou em uma série de ideias e filosofias a respeito. Mas o que é isso? Como é vivenciar a culpa? Ao questionar "O que é isso?", a consciência tem a permissão de penetrá-la. Então, veja bem, pode haver culpa, mas agora é a culpa que está ciente. Se tentar fazer algo com a culpa, tal como livrar-se dela, então não estará realmennte com ela.

A luz do próprio despertar é o agente mais transformador, e a alquimia mais profunda acontece na disposição de permanecer ciente de sua própria inconsciência. Quando aquele botaozinho é acionado, algo inconsciente emerge e o convite é permanecer desperto. E isso. Só fique desperto, e aí a alquimia acontece. Só permaneça desperto. Não aja espiritualmente, recuando cinquenta passos e testemunhando de certa distância infinita. Isso é, de alguma forma, melhor do que se perder nisso, mas mesmo isso é uma forma sutil de inconsciência, pois é uma forma sutil de evitar ou de retirar o despertar do que é. O despertar está bem aqui. Você não precisa levá-lo para trás, para cima ou para baixo de alguma coisa para ser essencialmente livre do que está emergindo. Já é livre. Não precisa recuar. Somente o eu inferior precisa recuar ou se afastar. E isso, também, pode se tornar ciente. "Ah, O eu inferior está tentando se espiritualizar, tentando afastar-se de algo. Esse botão foi acionado." Agora isso torna-se ciente.

O despertar não está recuando, tentando explicar, tentando consertar ou se livrar de algo. O despertar, quando tem a permisão de ser vivenciado, é um amor e um carinho profundos pelo que existe. O amor está sempre se lançando no momento, aqui e agora, entregando-se totalmente no agora. Estar em relacionamento dessa maneira é simples. É humilde. É muito íntimo. Assim é possível encontrar outra pessoa de uma forma totalmente diferente.

A maioria dos relacionamentos começa como uma relação inconsciente. Quando a luz do despertar passa a brilhar no relacionamento, a inconsciência será revelada. Ao ser revelada, é muito importante não querer espiritualizá-la. Algumas pessoas querem espiritualizar suas relações em vez de torná-las conscientes. Ouerem transformá-las em uma fantasia espiritualizada em que o parceiro satisfaz todas as suas idelas espirituais sobre o que poderia ser a relação. Acreditam saber como deveria ser, como poderia ser, que direção o relacionamento vai seguir.

Ao acalmar-se e distanciar-se disso, você retorna a algo que é muito íntimo e inocente, a um lugar em que finalmente está disposto a dizer a verdade não para esconder, não para impor consciência na pauta de algum relacionamento, mas para simplesmente deixá-la vir à tona. Então, jamais saberá como será cada momento - quanta consciência, percepção consciente e amor vão querer emergir. Isso pode, certamente, demolir o relacionamento, assim como a Verdade pode devastá-lo. Quando a Verdade emerge em você, o que ainda está se agarrando internamente à não verdade é visto em grande contraste. E no relacionamento, quando a consciência emerge e começa a operar e a se mover simplesmente porque você não está mais controlando, a Verdade e a não verdade na relação vão se confrontar, e você verá a incongruência.

E aí que os botões são apertados - não só o meu ou o seu botão, mas agora temos um terceiro, chamado "nosso botão".

Todo relacionamento tem os nossos botões, pois, quando nos juntamos, cria se esse algo mais chamado "nosso? Se um de nós ou qualquer outra pessoa aperta o nosso botão, o relacionamento se agita, pois o nosso botão foi acionado. Esse "nós" terá seus próprios botões e sua própria consciência, que é um produto da fusão de dois botões "meus".

À medida que deixamos a consciência entrar, paramos de nos relacionar a partir de nossos medos. Imagine só se nada que fizesse tivesse como base um sentimento de medo ou insegurança. É muito eficaz quando olhamos para os nossos relacionamentos e indagamos o que aconteceria se não fizéssemos nada com base no medo e na insegurança. Isso é uma revolução para a maioria das pessoas. Quanto mais íntima a relação, maior é a revolução. Se as coisas não forem feitas com base no medo ou insegurança, é uma jogada totalmente diferente. É disso que se trata quando digo que a Verdade pode demolir seu relacionamento, embora possa ser uma demolição muito positiva.

Percebo que várias pessoas que tiveram uma profunda percepção da Verdade estão sobrecarregadas com o desafio de ser o que elas realmente são no relacionamento - devido a algum medo ou insegurança de como isso seria recebido ou não, ou o que isso poderia ou não desencadear. Isso pode torná-lo muito inseguro, pois não se sabe o que irá acontecer se algumas partes de sua vida que negavam a Verdade deixarem de ser negadas.

Com frequência, em vez de encarar a insegurança ou o medo, as pessoas simplesmente se afastam deles. Assim, tal aspecto do relacionamento torna-se uma parte isolada, separada da vida, à qual a consciência não tem permissão de chegar. Como todos sabem, tanto a curto como a longo prazo, quanto mais consciente, mais difcil é manter a divisão. Se for ser totalmente consciente, relacionar-se a partir da divisão não é uma opção. Por isso, é literalmente impossível estar totalmente desperto e não estar desperto em todos os pontos. Se não estiver plenamente desperto em todas as partes, signitica que você não alcançou a plenitude do que é.

Quando se tem uma pequena experiência espiritual, é muito ficil sutilmente menosprezar alguém que você acredita não ter tido a mesma experiência. Assim que fizer isso, não existe um encontro real. Como você pode encontrar o inconsciente de uma forma que seja inocente e na qual, em vez de menosprezar alguém, você o encontre olho no olho? Podemos aprender sobre relações dármicas ouvindo os pássaros, observando a qualidade da nossa escuta e a qualidade do acolhimento do som, a forma como deixamos o som entrar e nos permitimos ser tocados por ele. Ao simplesmente fazermos isso, tornamo-nos mais cientes.

Podemos aprender mais sobre relações dármicas nisso do que em centenas de livros.

Quando costumava fazer retiros no Sonoma Zen Center, que era muito silencioso, estávamos de pé às 4h30 da manha. Era tudo lindo e tranquilo àquela hora da manhã. O sol estava começando a clarear o ar antes de surgir no horizonte, e a experiência de simplesmente sentir o mundo todo acordar, todo seu self despertar, era incrível. Era maravilhoso. Por volta das 6h30 da manhá, do lado oposto da rua, em frente ao templo zen, os vizinhos acordavam. Eles tinham uma ideia diferente de como se preparar para o dia. Às 6h30 da manhã eles tocavam Led Zeppelin a todo volume. É aí que as relações dármicas podem ser aprendidas. E fácil permanecer conscientes em relação aos pássaros, ao que é agradável, à bela manifestação do Divino, ao seu próprio self verdadeiro - até Jimmy Page começar a tocar os primeiros acordes potentes. E aí está. Há o convite. "O que é isto? E qual é minha relação com isto?"

O que descobri é que se tratava apenas de um outro som, e tudo estava perfeitamente bem. E era lindo porque ampliava meu sentido do espiritual. Era apenas o que é. Era Deus fingindo ser uma estrela do rock. Deus não era apenas todos os breves momentos bons, prazerosos, silenciosos e serenos. Isso pega a ideia de espiritualidade e a divide bem ao meio, e diz: "Tudo bem, você quer ver Deus? Aqui está Deus - Deus por inteiro. Não só a parte que se quer ver, mas por inteiro".

Então, como um pontapé final, em pelo menos um dos retiros anuais, no último dia ficávamos sentados o dia todo e, em vez de ir para a cama por volta das 22 horas, fazíamos uma pequena pausa e ficávamos sentados em períodos de meditação de três horas e meia, alternando com dez minutos de caminhada, até às 23 horas, e então sentávamos da meia-noite às 4 horas da manhã em um período contínuo de meditação, sem nos levantar. Assim, no caso de pensar já ter atingido o nirvana durante o retiro e com experiências ótimas, porque suas meditações foram realmente boas e você se sentia realmente bem, esqueça! Após cinco dias ou uma semana, isto vai demoli-lo. Ninguém vai embora sentindo-se presunçoso depois disso. Seria possível na primeira parte do retiro, mas não no final.

Essa forma de ficar sentado não era realmente necessária, mas, depois de conduzir vários retiros, comecei a ver a beleza nisso. Que dádiva maravilhosa poder ir embora sem nenhuma percepção espiritual presunçosa - acreditando que fora capaz de permanecer bem e sereno durante todo o retiro. Que presente ser colocado de volta na inocência. Depois de um certo tempo, não era uma derrota, em absoluto. Era simplesmente sentir, "Ah, aqui estamos nós novamente, em uma sala cheia, com cinquenta pessoas, e, depois de três horas e meia sentados, continuamente, todos nós estamos tentando sobreviver. O iluminado e o não iluminado, igualmente, estão tentando sobreviver". O sentimento de dificuldade ou qualquer ideia espiritual sobre mim, elevada ou baixa, entrava em colapso. Naquele colapso, descobri que a que da da fachada era tão deliciosa, tão linda, tão sagrada. Era uma oportunidade de ver a Unidade em tudo, em cada experiência, e não como uma ideia de como seria. Quando a ideia entra em colapso, a realidade do sagrado tem uma oportunidade de emergir. E o sagrado real é muito mais bonito do que a ideia - não tão dramático, mas muito mais belo.

O relacionamento dármico é um relacionamento que é real.

A beleza está no real. Não está na ideia do relacionamento espiritual. Está na realidade da relação.

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